A Magia de Anima
Ano 0 – Epicentro
“O conhecimento é a fonte de toda a magia, e abrir-se à ele é a chave para usá-la.” – Feiticeira desconhecida
Livro 1 – Ano 1 - Capítulo 1 - 13 Anos
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Uma arena doméstica, palácio de memórias
Conflito indevido de gigantes conhecidos
Trovões contra a calmaria, que não se abala
Que abriga contra a monstruosidade
Que abriga contr….
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"Aquele sonho, de novo…” pensei, ainda embriagada pelo sono enquanto a luz do sol, atenuada pela janela, se encontrava com os meus olhos, me levando de volta ao mundo físico. Era tempo de férias da escola, mas a minha avó sempre disse que é bom aprendermos a seguir os ritmos da natureza, e as vezes eu me arrependo dessa escolha quando vou dormir tarde. Me sentei, e fiquei por uns segundos olhando para um canto do meu quarto com os olhos entreabertos, vendo nada mais do que uma escrivaninha que também estava começando a ser iluminada pelo sol, até que lembrei o porquê de o dia de hoje ter uma sensação de ser importante: era o meu aniversário de 13 anos!
Depois de me recobrar, colocar uma roupa para ficar minimamente apresentável apesar de esquecer completamente de arrumar o meu cabelo, fui na direção da cozinha, o segundo lugar preferido da vovó em casa, perdendo apenas para a sua hortinha, e onde eu teria grandes chances de encontrá-la. Lá, não só a encontrei, curvada contra a pia, como também encontrei um pequeno bolinho, decorado com amoras e um raminho de hortelã, que aparentava estar a algum tempo a minha espera.
– Oi vovó! Bom dia~
– Bom dia, Anima. Você parece animada hoje, será que colocar o bolinho na mesa mais cedo ao invés de esperar você chegar levantou o seu astral? – Disse ela, pontuando com uma leve risada no final.
– Ah, é que eu lembro da Maia dizendo que tinha uma surpresa que eu iria gostar pra me contar hoje! E você sabe como eu fico curiosa com essas coisas hehe.
– Hmm, acho que algumas palavras da Maia conseguiram vencer o meu bolo. Tenho que aprender esse poder com ela um dia. – Comentou ela com um tom irônico.
– Ahh, é verdade! Eu adorei o bolinho! – Disse, enquanto agradecia ao dividir com ela um abraço caloroso.
Maia foi a ponta de esperança que me ajudou a sobreviver esses últimos anos na escola. Enquanto alguns falavam pelas minhas costas do fato que não conheço meus pais, ou que vivo junto da minha avó, e me isolavam por isso, ela foi a única da minha sala que quis ser minha amiga depois de todo mundo ter se afastado. Esse isolamento e mesmo certas vezes que caçoaram de mim por isso me faz pensar que essa história de Nimouv como “a terra onde as pluralidades convivem” é só uma história mesmo. A melhor parte dessa amizade veio quando descobri que somos vizinhas, fazendo com que os nossos finais de semana juntas fossem sempre a melhor parte da semana.
Enquanto aproveitava aquele raro café da manhã, eu pergunto:
– Você também fez um feitiço com esse bolo igual da outra vez?
– Não, não… Mas te asseguro que pedi à amoreira e à hortelã que deixassem ele o mais gostoso possível. – Respondeu com um sorriso.
– Ah, agora você conversa com as plantas também, é? – Retruquei.
– Mais importante, você gostaria de aprender? – Devolveu, com um sorriso maroto no rosto.
Meu coração palpitou por um momento, e no momento seguinte rimos juntas da situação. Talvez ter vivido com ela desde pequena seja um motivo para estar tão acostumada com todas as peripécias mágicas que minha avó realiza em casa, algumas das quais foram ao mesmo tempo motivo de inspiração pessoal e de rejeição na escola. Claramente, a inspiração superou o poder de qualquer isolamento, fazendo meu desejo ser me tornar alguém como ela no futuro, e sei que não sou a única a compartilhá-lo: Maia também quer se tornar uma feiticeira!
Nossas risadas foram interrompidas pela campainha, e já era claro para mim quem estava do outro lado. Me levantei e corri direto para a porta da frente, e confirmando minhas expectativas, ao abrí-la encontrei uma garota sorridente, que diferente de mim lembrou de arrumar seus cabelos negros antes de sair de casa.
– Oi Anima! Ta pronta pra surpresa de aniversário?!
– Fala logo Maia! To esperando desde ontem! – Disse, com um sorriso de orelha a orelha.
– Aqui!
Ela me entregou uma carta, na qual estava um papel com aquelas marcas de papel oficial, as quais liam a confirmação da matrícula de Maia na Academia de Ciências e Artes Mágicas de Nimouv, uma escola que virou o símbolo da nossa cidade por ir além de umna escola normal ao ensinar um pouco de tudo que pode ser oferecido, desde geografia e biologia até música e mesmo magia! Minha melhor amiga estava realizando o nosso sonho, mas de uma forma que eu não seria capaz de acompanhá-la. Meu sorriso rapidamente começou a se quebrar em uma mistura de tristeza por mim e felicidade por ela.
– Anima, ta tudo bem? Parece que você ficou triste com a surpresa.
– Ta sim, inclusive estou super feliz por você… É que eu ainda estou processando que vamos ter que estudar separadas agora, depois de tanto tempo. A gente ainda se vê nos finais de semana, não?
– Ué, a Leana não te contou? – Perguntou Maia, confusa.
Nessa hora meu coração pulou uma batida. O que minha avó estava escondendo de mim? Será que…
– Ah, eu achei que você iria contar pra ela, Maia. – Disse a voz da minha avó, que surgiu atrás de mim tão sorrateiramente quanto um fantasma teria feito. – Acontece que quando descobri que você estava tendo problemas com valentões na sua outra escola eu achei melhor matricular você nessa, uma que tenho certeza que coisas assim não vão acontecer. Acreditei que a Maia iria te contar isso com a sua surpresa, mas acho que confundi o recado. – Ressaltou com uma risada.
Meus olhos retornaram do luto, e meu corpo agiu sozinho ao dar o abraço mais forte que consegui na minha avó. No mesmo dia em que fiz 13 anos descobri que vou poder realizar meu sonho, e com a melhor companhia possível.
– Maia, por favor, entre! Eu preparei um bolinho pra comemorar o dia, e vocês podem comer e conversar enquanto eu termino de arrumar a cozinha. – Disse minha avó.
Nós entramos, e assim que suprimi a vontade de cantar "Feliz Aniversário" de Maia, sentamos aos risos e cortei um pedaço do bolinho para ela. Assim que sentei, percebi algo que minha avó disse estava um pouco fora do normal, e então indaguei:
- Vovó, mas desde quando você soube que todo mundo estava me deixando de lado lá na escola? E como você tem tanta certeza que não vai acontecer mais?
- Eu tive umas suspeitas devido as nossas conversas, e vendo a forma como você voltava pra casa, então um dia eu pedi para os pais da Maia, em um dia que estivessem disponíveis, ficarem um pouco mais lá depois de deixarem vocês na escola, para observarem se algo acontecia. Você acredita que nenhum professor me contou que as outras crianças se afastavam de você como se estivessem vendo um monstro nas reuniões que tinhamos? Não podia continuar te deixando em um lugar como aquele. - Respondeu com ar de indignação.
- Eles me contaram também, praticamente viraram agentes secretos da sua avó. - Comentou Maia, com uma risada.
- Agora em relação a minha certeza... Digamos que na ACAM eu tenho olhos e ouvidos por todos os lados, afinal, já inclusive fui uma professora nos meus tempos de moça. Pelo menos eu sei que pensariam duas vezes antes de esconderem coisas assim de mim. - Respondeu, com ares de orgulho.
- Mais agentes secretos, vovó? Assim não vou poder espirrar sem vc vir me agasalhar pra não pegar gripe. - Disse, já começando a sentir falta da privacidade que dividia com a Maia na escola.
- Acho melhor do que a discriminação que estavam fazendo com você, e inclusive com a Maia também. - Devolveu, apontando uma colher molhada para a Maia.
A campainha tocou novamente, porém dessa vez não imaginava quem seria.
- Pode ir lá atender, querida? Estou terminando de enxaguar o batedor aqui. - Pediu minha avó.
Fazendo um pouco mais de questão de arrumar meu cabelo com as mãos, abri a porta enquanto era acompanhada por Maia, que me seguiu como se soubesse quem havia chegado. Do outro lado, encontrei os pais da Maia.
- Feliz aniversário, Anima! - Cantaram em uníssono - Já que você também vai estudar lá na ACAM, trouxemos esse presentinho pra você! - Disseram, ao mesmo tempo que entregaram um objeto retangular embrulhado em papel estrelado.
- Oi Ventura, oi Nídia! Muito obrigada!! - Respondi, e os convidei para entrar enquanto segurava o desejo de abrir o presente. - Entrem! Minha avó fez um bolinho aqui pra gente.
Após dadas as boas vindas logo me prontifiquei a entregar um pedaço de bolo pra cada um antes que pudessem recusar.
- Aqui dois pedaços do bolinho que minha avó fez. Vocẽs vão gostar! - Disse sem conter o sorriso, em parte pelo aniversário e em parte por saber que iria realizar um sonho com a minha melhor amiga.
- Muito obrigada Anima, estou vendo que também deve ter gostado da surpresa que a Maia te deu hoje, não? - Disse Nídia.
- Ela nem sabia que estava indo pra ACAM também, mãe, a Leana não falou pra ela. Foi uma surpresa dupla, he he.
- Caramba, mas você realmente achou que iriamos deixar com que você ficasse numa situação como aquela na escola? Nessa etapa da vida de vocês, um exílio não faz bem de jeito nenhum. - Perguntou Ventura.
Talvez devido ao fato de sermos vizinhas, depois que Maia e eu nos tornamos amigas, seus pais acabaram desenvolvendo uma ótima relação com a minha avó, inclusive ajudando ela a cuidar de mim. Eu gosto de pensar que eles também são meus pais, e que Maia e eu somos irmãs, algo que as vezes parece ser mais verdade do que apenas um faz-de-conta qualquer.
- Olha, eu já vi tantas histórias que tinham personagens que ficavam sozihos assim na escola também, achei que fosse algo que acontecia com algumas pessoas naturalmente, como peças que não encaixam em um quebra-cabeças. - Respondi com certa resignação. - O bom é que são situações assim que descobrimos quem são nossos amigos de verdade. - Disse, sorrindo pra Maia, que devolveu o sorriso.
- Inclusive, falando em amiga, você gostaria de convidar a sua amiga pra abrir o presente que está aí na sua mão? Eu não vi o que era, estou curiosa. - Pediu Maia.
- Claro!
Com cuidado para não estragar a bonita embalagem de estrelas, nós duas abrimos o pacote e nele encontramos um caderno de capa dura sem estampa, que parecia ser de algum material reciclado. Meus olhos brilharam levemente.
- Nós sabemos que você adora escrever sobre tudo, então buscamos um no qual você pode escrever o que quiser até na capa. O que achou? - Perguntou Nídia.
Eu sempre gostei de desenhar e de escrever, desde que aprendi. Havia algo nas palavras, ou ao menos nas letras em si, que era especial pra mim, e ainda mais com o estímulo que minha avó dava ao mostrar os cadernos antigos dela, eu acabei rabiscando um pouco de tudo, desde frases e poemas sobre o que estava acontecendo na minha vida até mesmo pequenas histórias sobre as plantas do jardim de casa e suas aparências.
- Eu adorei Nídia! Ainda mais esse que da pra decorar a capa também do jeito que quiser. Agora é descobrir que tipo de coisa vou escrever nele, he he.
- Sabe, agora que você vai estudar na ACAM, tenho uma sugestão pra você sobre o que escrever nele: uma das mais importantes ferramentas de todo mundo que faz magia é o seu diário mágico, como os meus que vocẽ gostava de ler, e este pode ser o seu, se desejar. - Sugeriu minha avó, de uma forma que deixava incerto se tinha combinado a fala com os pais de Maia ou não.
- Ei, então nós também temos que ir atrás de um pra Maia, não é? - Comentei, já lançando olhares pra Maia, que parecia ter gostado da ideia.
- Mãe, pai, tudo bem se a gente sair pra ver isso hoje? Podemos já aproveitar e levar a Anima pra pegarmos todos os materiais juntas! - Pediu, já entendendo a deixa que entreguei a ela. Com certeza não deixaríamos ser um passeio apenas para buscar material escolar, ainda mais em um final de semana como aquele.
- Ai ai, essas crianças... - Bufou minha avó.
- Eu pessoalmente não vejo problemas em ir ver isso hoje, e você Ni? - Perguntou Ventura, com Nídia concordando logo em seguida.
- Então você pode ir também Anima, só toma cuidado pra não dar muito trabalho pro Ventura e pra Nídia, tudo bem?
- Pode deixar, vovó! - Disse apressada enquanto ia para meu quarto me arrumar para sair.
Eu sabia que olharia para este dia como um dos melhores da minha vida.
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Eu não consegui dormir rapidamente devido a empolgação. Fingindo que havia dormido, esperei até que o relógio batesse meia noite, e então me voltei para a janela do meu quarto. Como esperado para toda noite de lua nova, lá havia mais um bilhete, da pessoa sem nome que sabia tanto sobre mim e preocupava, sem motivos minha avó, já que nunca me fez mal, chegando até a dizer que já afastou alguns valentões mais violentos de mim na escola. Nele, havia duas escritas diferentes, que liam “Feliz aniversário, e bons estudos! Você está em boas mãos agora.” e “Lembre-se: incorpore a essência de todas as magias, e se torne a maior das feiticeiras.”
Um pouco de tudo, é esse o tipo de magia que quero ter.
Livro 1 - Ano 1 - Capítulo 2 -